A primeira oportunidade da esquerda é a última de Costa
Antes de mais, assuntos domésticos: como devem ter reparado através da página de facebook do Instituto Público, este espaço vai deixar de ser um palanque solitário. Recentemente adicionámos ao nosso ‘plantel’ a Mafalda, o Rodrigo, a Laura e a Catarina, que, por virem de perspectivas diferentes, vão certamente adicionar qualidade ao IP. Bem-vind@s!Não vou falar sobre o discurso de Cavaco de sexta-feira passada. As reacções foram, ainda que por razões diferentes, surpreendentemente unânimes a concluir a verdadeira trapalhada, diga-se não sem eufemismo, que o discurso de Cavaco adensou. A decisão não foi surpresa para ninguém e, de resto, não se pode esperar muito mais de um Presidente que foi sempre o fiel da balança…de um dos lados. Além disso, Cavaco-Presidente é azelha e isso também já sabemos há muito. A primeira parte explica o conteúdo, a segunda - a azelhice - explica a forma desastrada como Cavaco anunciou a sua decisão ao país. Tenho tanta pena quanto Cavaco parece ter de ser ele o Presidente da República actualmente e estar a passar por isto; Cavaco não tem arcabouço para lidar com uma situação destas. De resto, o Rodrigo fez uma boa análise aqui e revejo-me na maior parte, sobretudo na conclusão.
Prefiro debruçar-me sobre o assunto que Cavaco pretendia discutir mas cuja azelhice acabou por relegar para segundo plano: o governo de esquerda que Cavaco sabe que por mais fitas que faça vai ter de viabilizar daqui a pouco tempo. De facto, Portugal nunca viveu uma situação política assim - se é verdade que a força política mais votada foi a coligação de direita, a direita não tem maioria. Por isso, até compreendo que Cavaco tenha indigitado Passos Coelho como primeiro-ministro, mesmo que esse seja um exercício fútil (e que mais fútil ficou depois do discurso de Cavaco ter eliminado qualquer hipótese de subversão no centro-esquerda que viabilizasse o governo da coligação). Mas a coligação já é história; vai cair e pronto. Cavaco tem um Parlamento acabado de eleger e está a ficar sem tempo para convocar novas eleições - a única solução de governo que este Parlamento consegue produzir é um governo PS apoiado pelos partidos de esquerda.
Isso traz finalmente os partidos à esquerda do PS a um cenário de governação, ainda que indirecta; e essa mudança, mesmo que não dure a legislatura - e não deverá durar - deve ser saudada. O argumento da tradição não colhe, simplesmente - o facto de as coisas se terem passado de certo modo até agora não significa que, com circunstâncias diferentes, se deva continuar o mesmo caminho. Além disso, 40 anos não é nada.
Esta é, portanto, uma primeira oportunidade para a esquerda em Portugal - a primeira oportunidade de sentar-se à mesa, acertar posições e, a partir de pequenos assuntos mas com magnitude crescente, finalmente traduzir o facto do Parlamento ter frequentemente uma maioria de esquerda em algo concreto.
Essa primeira oportunidade é perpendicular a outra, bem mais imediata: a primeira oportunidade da esquerda é a última oportunidade de António Costa. Este factor coloca uma sobrecarga de pressão nestas negociações: ou António Costa alcança um acordo histórico entre os três partidos de esquerda, ou o frágil balão de ar quente que o mantém na liderança e Costa é forçado a uma aterragem de emergência num congresso extraordinário onde - e este é o conceito que a Ciência Política usa - vai ouvir das boas.