José Sócrates foi preso à saída do avião que o trazia de Paris, detido para interrogatório e finalmente colocado em prisão preventiva. Até aqui tudo bem. Ao processo em si já lá vou. O que não faz sentido é estarem meios de comunicação social casualmente a passarem pelo aeroporto de câmaras na mão, preparados ao ponto de captarem imagens do ex-primeiro-ministro a ser detido e levado para interrogatório. Ou temos os melhores, mais sagazes jornalistas desde que há memória, com uma intuição verdadeiramente sobrenatural, ou as violações do segredo de justiça continuam ao mesmo nível de outros processos. A minha intuição, singela e mundana como é, leva-me a suspeitar da segunda hipótese.
Não tenho absolutamente nada a dizer o caso. A detenção de Sócrates, havendo motivos para tal, é só mais uma detenção - é preocupante para a sociedade pelo facto de estarmos a falar de um ex-primeiro-ministro, mas isso à Justiça não interessa nem deve interessar. Seguramente também não irei defender Sócrates. A sua figura política nunca me suscitou nenhuma simpatia de maior: acho parte do seu legado positivo e parte negativo. Mas também não é esse o debate.
Quero centrar este texto em duas questões. Em primeiro lugar, o que já brevemente abordei acima: as violações do segredo de justiça. Em segundo lugar, o autêntico veneno político latente que este caso, receio, irá provocar na esquerda e na campanha eleitoral.
Como já referi, não tenho nada para contestar a acção da justiça. Sócrates foi detido, interrogado e posto em prisão preventiva. Trâmites perfeitamente normais em qualquer processo. O que não é normal é o nível de detalhe – e de antecipação, assumindo que as equipas da SIC e da CMTV não tenham combinado ir tomar café ao aeroporto – que os meios de comunicação social revelaram. As reportagens e a ‘investigação’ da saudosa Felícia Cabrita, sempre ela, prontas a sair nem duas horas depois da detenção de Sócrates. Essas reportagens são desconfortáveis, mas tão-só isso. Já o nível de detalhe, bem dentro do núcleo de informação seguramente protegido pelo segredo de justiça, a que jornais e televisões tiveram acesso é desinquietante. Espero, sinceramente, que este processo não seja mais um Casa Pia. Em que o caos seja usado como forma de ilibar alguém, atirando com tantas suspeitas e tantos putativos arguidos e em que no fim não se apure a verdade. Que não se lance fumo sobre todos e no fim ninguém tenha ateado o fogo. Que tanta reportagem, tanta testemunha em vocoder, tanta denúncia anónima, tantas vezes ligada a política, não sirva para nada. A mediatização deste processo e a permeabilidade de informação entre justiça e comunicação social inquieta-me.
A este ponto talvez seja útil repetir o seguinte: não tenho nenhuma apreciação de maior por Sócrates. Não simpatizo com a figura. Não estou na metade do país que o idolatra. Mas também não estou, seguramente, na metade do país que bebe um copo de ódio-a-Sócrates ao pequeno-almoço, nem que vê nele o anti-Cristo. Se Sócrates for culpado, desejo – desejo sinceramente – que seja condenado. Senão, não. Simples. Simplex.
O primeiro ponto é sem dúvida importante para a credibilização da justiça – e para a descredibilização da política, se o processo não for conduzido de forma clara. Mas esse aspecto, depois de tantos casos mediáticos que tiveram fins inconclusivos, não é novidade em Portugal. O segundo ponto é razoavelmente inédito: a menos de um ano das legislativas, temos um elemento odiado por metade do país em prisão preventiva por acusações gravíssimas. O seu antigo número dois é o secretário-geral do mesmo partido. Não é preciso exactamente fazer um desenho para revelar a guerra suja ao PS (e à esquerda, numa visão dicotómica PS ou PSD/CDS das próximas eleições) que este processo pode significar. E muito honestamente, não acredito que a dignidade resista à tentação. António Costa e o PS vão ser atacados com isto, tão mais quanto as eleições estiverem próximas. E quando os “spin doctors”, assumindo que os há, decidirem que é preciso refrescar daqui a uns meses, o processo Casa Pia vai ser ressuscitado. Já vejo as ligações: Costa era número dois de Sócrates. Mas Costa também era parte integrante da liderança do PS em 2003 – já vi, várias vezes nos últimos dias, imagens de Ferro, Pedroso e Costa lado a lado numa conferência de imprensa devido à detenção/libertação de Pedroso – era líder parlamentar. Hoje Ferro é líder parlamentar e Costa líder do partido. Nenhum dos dois está no epicentro de nenhum dos casos, mas estão demasiado perto para não serem puxados para ele. “São todos uns gatunos”, todos iguais, vai correr por aí. Passos Coelho já disse que não era(m).
Fui longe de mais? Não acho. Chamem-me de lunático. Daqui a uns meses falamos.
P. S. – no entretanto, nem vistos Gold, nem nada do caso BES. O mediatismo tem défice de atenção.
O facto é este: Miguel Macedo, até agora Ministro da Administração Interna, demitiu-se. No seguimento dos desenvolvimentos da ‘operação Labirinto’ (um dia hei-de descobrir quem é o criativo da PJ que se dedica a nomear operações), Macedo concluiu que não tinha a autoridade necessária para continuar a desempenhar o cargo que até aí ocupava.
Dificilmente a demissão de um ministro suscitou tanto aplauso: partidos do governo e da oposição, jornalistas e comentadores, todos fizeram fila para elogiar o gesto do agora ex-ministro. De facto, Macedo reagiu bem e de forma clara: ao aperceber-se que uma sucessão de eventos tornavam a sua continuidade no cargo insustentável, demite-se, na intenção declarada de salvaguardar o a autoridade do governo e a sua própria imagem.
Há, no entanto, um imediato efeito ricochete (um de dois): a demissão de Macedo faz com que a gravidade puxe Crato e Teixeira da Cruz ainda mais para baixo. A atitude correta do primeiro esmaga ainda mais a autoridade dos últimos dois para se manterem nas pastas que tutelam.
Esta demissão, este escândalo – mais uma, mais um – vêm debilitar a imagem já depauperada deste governo. Até aqui, a permanência dos ministros da Educação e da Justiça denunciava um governo em gestão até ao fim do seu mandato. O primeiro-ministro recusar-se-ia a fazer uma remodelação governamental profunda por, simplesmente, não valer a pena.
O segundo efeito ricochete é este: a demissão de Macedo (após insistência do próprio para abandonar o cargo) faz cair este castelo de cartas. Com um ministro como o da Administração Interna a abandonar o cargo, não há razão para evitar uma remodelação. Quaisquer argumentos que gravitem em torno da ‘estabilidade’ não colhem, visto o caos que os sistemas educativo e judicial mergulharam já há meses. A demissão de Macedo abre uma curiosa última oportunidade para o governo ganhar fôlego e assumir alguma ambição em governar o país depois de 2015. Uma remodelação governamental que traga novos rostos na Educação, Justiça, Administração Interna e o calibrar de algumas funções na gestão interna do executivo podem servir de trampolim para a esperança da coligação. Macedo é o último comboio do governo para o pós-2015.
No entanto - e felizmente para quem, como este mui humilde ser que vos escreve, não aguenta mais este governo – as probabilidades de Passos Coelho proceder a essa remodelação são diminutas, tendo em conta o historial do PM desde 2011. A mesma insistência que, honra lhe seja feita, segurou o governo depois da ‘operação Irrevogável’ de Portas (se houver uma vaga na PJ para nomear operações, por favor considerem o meu CV para o lugar. Passo recibos verdes), joga agora e já há muito tempo contra o próprio. Passos Coelho permaneceu sempre vidrado numa estabilidade governativa que já há muito não existe. As três demissões que este governo conheceu – Gaspar, Relvas e Macedo – acontecerem (à excepção, talvez, desta última) quando o clima à volta do ministro em questão estava já bem para além do irrespirável. Preferiu sempre esvaziar a pressão mudando a uma escala nunca antes vista as secretarias de estado.
Passos Coelho vai, muito provavelmente, rasgar o bilhete que Macedo lhe deixou com destino a São Bento em 2015. Provavelmente enquanto resmunga ‘que se lixem as eleições’.
Sobre o que vou escrever hoje, já muitos escreveram, provavelmente em melhor prosa, mais fluente e menos esforçadamente polida. Mas este tema já me assalta há meses e finalmente cheguei a termos para escrever sobre ele.
Não há, em qualquer sítio desenvolvido – da Califórnia ao Japão, passando pela Polónia – nada de novo. Restam vestígios do que foi diferente: nalguns sítios come-se sushi, noutros goulash. Mas pode-se comer sushi na Hungria e goulash no Japão e provavelmente com a mesma qualidade, dependendo do orçamento que se tenha. Restam estereótipos culturais que ambas as partes se esforçam por manter – o sul preguiçoso, o norte trabalhador. Ambos cultivam essa imagem de si e dos outros. A junção de culturas diferentes, com tudo o que trouxe de bom, fez desaparecer o que de verdadeiramente diferente haveria entre países. Mas aonde quer que vá, encontro o centro de qualquer cidade inundada de coffee houses onde se bebe o melhor café italiano, Illy ou Lavazza (deixa-me dar mais um gole, aqui em Vilnius – confere, sabe tal e qual o latte que bebi em Salónica).
A globalização tornou os cidadãos consumidores. Essa ideia não é nova. O que é realmente preocupante é o facto de, independentemente da vida ter algum sentido ou não, a clientalização do mundo ter tornado cada consumidor idiotamente irrelevante. Não há substância; a forma é tão estandardizada que o conteúdo de cada um é invariável. Não há marcas distintivas de ser para ser. Os homens são iguais - eat, drink, sleep, repeat. A maior distinção entre dois consumidores hoje é o tipo de coca-cola que preferem ou a rota que escolheram no voo da Ryanair. A dimensão do outro é insignificante, porque somos todos iguais. Antes os Japoneses eram facilmente identificáveis pelas Fujitsu e Kodak ao pescoço – agora usamos todos iPhones. Na Ucrânia ouvia a banda do momento daquelas bandas – agora entro num táxi em Kyiv e ouço Green Day primeiro, Rihanna depois.
Claro que essa aproximação, e o melhor nível de vida que isso significa, é positiva. Não estou a por isso em causa – nem consigo, é por demais evidente. Mas perdeu-se qualquer coisa. Qualquer coisa que é necessário voltar a encontrar de uma maneira ou de outra, antes que todas as brilhantes mentes europeias entre os 16 e os 18 anos decidam todas ir num gap year para um canto remoto de África ou o Sudeste Asiático morrer de malária enquanto embarcam na aventura lírica de ir ‘ensinar inglês’, quais neo-exploradores românticos. Eles vão porque não sabem para onde se virar. Dá igual: voltam com um adereço capilar vistoso, a promessa de que a “experiência” mudou as suas vidas e dão uma autêntica volta de 360º graus até chegarem ao mesmo ponto onde estavam antes de partirem e acabarem o curso em, sei lá, gestão ou economia. Fazem três estágios, arranjam um emprego eventualmente e metem o tal adereço capilar vistoso numa caixa a ganhar pó. Os filhos hão-de fazer o mesmo. E os netos – enquanto não soubermos quem somos culturalmente e para onde vamos. É isto. Agora, vou ali à praça central de Varsóvia beber um latte, enquanto uso o wi-fi do café para actualizar o facebook, publicar este texto e já volto aos lattes que bebo em Amesterdão, Londres, em Lisboa ou onde raio for.